O texto abaixo foi publicado, originalmente, na edição impressa do jornal Correio Braziliense. Nele, Tiago Faria põe em evidência a mostra que o CCBB dedica à cineasta japonesa Naomi Kawase (foto).
Aroldo José Marinho
Em visita a Brasília, a cineasta japonesa explica os mistérios de um cinema cobiçado por festivais do mundo todo. Retrospectiva com 30 filmes da diretora, que competiu este ano em Cannes, começa hoje no CCBB
Nos minutos finais de uma partida de basquete, quando o cronômetro já torturava as jogadoras, Naomi Kawase descobriu por que se apaixonou tão perdidamente pelo cinema. O time perdia feio — e era uma derrota inevitável — quando a menina de 18 anos danou-se a chorar. “Notei cada momento desaparecendo, diminuindo, senti que aqueles momentos não voltariam mais”, conta a cineasta, que na época ainda cogitava seguir carreira nas quadras. “O técnico pensou que eu estava chorando por causa do placar. Mas não. Percebi ali que, com o cinema, eu recuperava o tempo que ia se perdendo na minha vida”, explica a diretora de 41 anos, em visita a Brasília.
Desde o primeiro curta-metragem, um filme singelo de cinco minutos, o cinema de Kawase se engalfinha contra o tempo. Uma batalha silenciosa, diga-se. Nos filmes da diretora, os minutos não correm com a taquicardia de uma prorrogação esportiva, mas deixam a impressão de se alargar diante dos olhos do espectador. “O cinema é como uma máquina do tempo. Uma ferramenta mágica”, afirma, numa conversa quase sussurrada, sereníssima, com o público que lotou a pré-estreia da mostra que exibe toda a filmografia da diretora (30 filmes, entre longas, curtas e médias) a partir de hoje na sala do CCBB.
Após a pré-estreia de Hanezu, exibido este ano na competição do Festival de Cannes, Kawase falou com simplicidade sobre um estilo que, num primeiro olhar, pode desorientar os sentidos: adentrar as florestas da cineasta representa, para o público ocidental, uma viagem de mistérios. Mas a aflição acaba assim que se ouve o discurso cristalino de Kawase. “Muitas vezes perguntam se tenho influência de diretores Wim Wenders, Bergman. Mas nunca tive essa intenção. Eu apenas vou vivendo a minha vida, filmando. Gosto de contar as histórias de pessoas comuns, que não serão lembradas daqui a 100 anos. São pessoas que não fazem nada de muito especial”, conta.
A bem da verdade, no entanto, esse vocabulário visual é mais complexo do que a cineasta dá a entender. Desde 1997, quando o longa Suzaku venceu o prêmio Cámera d'Or no Festival de Cannes (troféu para filmes de estreantes), seduz os festivais internacionais e deslumbra a crítica francesa, que trata a autora como a herdeira mais talentosa do mestre Yasujiro Ozu. Assim como o diretor de Era uma vez em Tóquio, ela também posiciona as lentes à altura do cotidiano doméstico, das mínimas relações familiares. Mas faz questão de rejeitar a herança. “Tenho pouco tempo para ver filmes dos outros. Quando vejo, é de uma forma apenas objetiva”, despista.
Na arte, ela sai à procura de outras inquietações: filmar a cidade natal, Nara (a 500km de Tóquio), é uma delas. Investigar a convivência entre o homem e a natureza, outra. Para imprimir nos filmes um ritmo fluido, espontâneo, a diretora aposta na improvisação. Que, na maior parte das vezes, envolve não apenas o elenco, mas toda a equipe de filmagem. A certa altura das filmagens de Hanezu, por exemplo, um passarinho se instalou sob um ventilador: o bicho acabou promovido a “ator” do longa-metragem. “Meus roteiros são tão soltos que às vezes fico até com medo, não sei aonde vão chegar. Por isso, sempre defino um ponto final para a história antes de começar a filmá-la”, explica.
Naturalidade
A intensidade das experiências acaba escapando para as narrativas, que envolvem o espectador numa atmosfera que combina memória e sonho, passado e presente. Os temas aparecem no filme mais elogiado da diretora, Floresta dos lamentos (2007), que venceu o Grande Prêmio em Cannes. Na trama, um homem idoso escreve cartas para a esposa falecida. Até que é chegado o momento do último texto. “A água que corre no rio não volta, e por isso não podemos nos apegar aos sentimentos”, resume Kawase, num compasso zen.
A espiritualidade, outra característica associada à obra da diretora, aparece na tela com naturalidade. Até nesse aspecto, existe um viés autobiográfico que Kawase trata delicadamente. Aos 14 anos, a diretora perdeu o avô, um episódio que ainda contamina as imagens que filma. “Parece que ele está sempre aqui, ao meu lado”, confessa. “Acredito na ideia de uma figura divina zelando por nós. Mas ela pode ser uma montanha, uma floresta”, enumera. Um “milagre” que, para ela, está sempre ameaçado pela pressa dos homens. “As pessoas não sabem mais esperar. Querem avançar rapidamente, e a globalização, a internet só alimentam esse desejo. Talvez seja o fim de uma era”, observa. Nos filmes de Kawase, no entanto, a beleza vence a selvageria. Nem tudo está perdido.
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