O IS reproduz a entrevista concedida por Nelson Inocêncio (na foto de Ronaldo de Oliveira) na edição impressa de hoje do jornal Correio Braziliense. O entrevista é professor universitário e militante dos movimentos de cidadania negra.
Feridas para se fechar
Maíra de Deus Brito
José Carlos Vieira
O lirismo do artista e a voz suave e pausada não tiram de Nelson Inocêncio a força de suas palavras. Professor do Departamento de Artes Visuais e coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade de Brasília (UnB), ele recebeu o Correio para uma conversa sobre a situação do negro no Brasil. “Discuto raça e discuto racismo que é para a gente não fazer de conta que a ferida não existe. Tem a ferida? A gente tem que mostrar a ferida e tem que sará-la”, destaca ele, ao se lembrar de figuras importantes da cultura brasiliense, como Renato Matos, Robson Graia e a turma do hip-hop. “Eles saíram de Ceilândia e foram para São Paulo sem precisar pedir a bênção ao Plano Piloto.”
Você nasceu em Brasília? Como começou o seu contato com o movimento negro?
Sou de Brasília, nasci em 1961. Mas foi no Rio de Janeiro que eu comecei a me antenar às questões negras, com a eclosão do movimento da black music, do soul no país. Nesse momento, comecei a entender o que era ser uma pessoa negra: se você precisa afirmar uma identidade é por algum motivo. Pensar a identidade não tem só a ver com protesto, também precisa estar alimentada de processos positivos. Voltei para Brasília em 1978, com 17 anos, e foi quando me vinculei ao Centro de Estudos Afro-Brasileiros (Ceab). Foi a primeira entidade negra no DF e nossas reuniões aconteciam na Aruc, no Cruzeiro. (Nilton) Sabino, o então presidente da escola de samba, entendia a importância do debate e cedia a quadra para os nossos encontros. Em 1982, me filiei ao Movimento Negro Unificado, criado em 1978, em São Paulo, e no MNU tive uma trajetória de 14 anos. Como ativista, a minha contribuição foi no campo da imagem, ilustrando, fazendo cartazes. O Nelson Inocêncio professor, acadêmico, pesquisador, é resultado desse processo.
Quem são os artistas negros de destaque no Distrito Federal?
Tem Willy Mello, conhecido artisticamente como Olumello, que foi da equipe do Oscar Niemeyer. Ele é um artista negro com uma poética muito interessante. No campo das artes visuais, ele é inesquecível. No teatro, o falecido Robson Graia teve uma trajetória meteórica: fez 36 peças em 36 anos de vida. Na poesia, Jorge Amâncio e Cristiane Sobral, ela que, além de poeta, está nas artes cênicas. Robritto, nas artes plásticas. No campo da dança, há duas pessoas que eu queria destacar: José Calixto e Júlio César Pereira.
E na música?
Na música, há nomes muitos significativos, desde os mais antigos, como Renato Matos e as pessoas ligadas ao Clube do Choro, como Seu Vasconcellos, até os mais novos, como Ellen Oléria, Luciana Oliveira; a turma que faz hip-hop do DF. Esse curso que eles fizeram, saindo de Ceilândia e indo para São Paulo sem precisar pedir a bênção ao Plano Piloto, demonstra a força desse grupo. Eles tinham um grande público lá e eram ilustres desconhecidos em Brasília. Se você pensa o panorama das artes na cidade, há produções muito significativas que não podem ser subestimadas.
Qual é a pior faceta do racismo?
O cinismo. Porque no momento em que uma pessoa se ausenta, tudo parece mudar. Os comentários são desqualificadores, para não dizer coisa pior. No nosso país, o racismo tem essas artimanhas. Aqui, as pessoas acreditam que não precisam ser politicamente corretas, que podem desqualificar determinados segmentos e achar que isso faz parte do “nosso jeito de ser”. Como disse o sociólogo Florestan Fernandes, no Brasil as pessoas têm preconceito de ter preconceito. Para o artista, a gente precisa avançar até mesmo nas políticas culturais. Fazer com que elas sejam mais democráticas.
Cruz e Souza é um dos raros poetas negros que mereceram estudos de suas obras na universidade. Por que a academia investe pouco nesse
tipo de pesquisa?
Há um processo ideológico que se chama silenciamento. Essas figuras foram silenciadas. Por isso, falo do trabalho importante que o Museu Afro Brasil desenvolve, ele tem uma galeria de notáveis, mas muitas pessoas não sabem. E acredito que a gente precisa romper o silêncio. Na academia mesmo, não só no campo das artes, existem personalidades que são importantíssimas. Por exemplo, Juliano Moreira é referência na psiquiatria brasileira. No entanto, tem gente que nem sabe que ele era negro. Falar de Machado (de Assis)? Todos viram o comercial que saiu do ar por representar ele branco. Apesar de todas as mazelas, é importante que a gente diga: a cultura brasileira, não por benevolência, mas por um processo de luta constante, produziu intelectuais negros de uma qualidade inquestionável. Por que a academia não estuda Manoel Quirino, a família Rebouças, os negros artistas do século 19? Isso não é casual, é pensado, de cunho ideológico.
Por quê?
Não se pode dar visibilidade ou a gente branqueia as pessoas, como foi com Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, ou as silencia. A obra de Rubem Valentim, um artista que morou em Brasília, era considerado pela crítica brasileira como “macumbaria”. O trabalho dele só passou a ser respeitado quando a crítica internacional explicitou elogiosamente seu ponto de vista.
O silêncio que cala os artistas negros nos estudos da academia é o que dá voz para artistas afirmarem que Monteiro Lobato não era racista?
Nenhum clássico por ser clássico está livre de qualquer questionamento. Porque, se for isso, até a própria academia perderá seu sentido. Porque se você estudar os clássicos e não puder pensar onde ele avança e retrocede, você terá uma série de problemas. Monteiro Lobato é um clássico? Sim, mas não está acima de qualquer suspeita. Como Silvio Romero e Sérgio Buarque de Holanda também não estão. Nenhum desses, até porque eles pensaram cultura brasileira da forma mais hegemônica possível. Essas pessoas, todas notáveis, pensaram a cultura brasileira a partir de cima, não a partir do todo. Então, eu acho que é preciso questionar sim. Quando alguém diz que Tia Nastácia pulava feito uma macaca, pra quem já é animalizado, isso é terrível. Pra quem não sofre processo de animalização isso passa, né?
Mas há um purismo exacerbado no movimento negro no Brasil? E por que existe?
Primeiro, eu quero dizer o seguinte: a gente só fala de movimento para simplificar. No fundo, como diria Lélia Gonzales, uma grande antropóloga e ativista negra, existem movimentos. Há posturas que são distintas, divergentes, de confrontamento, como todo movimento. Se você fala em movimento sindical, nós temos quantas centrais? Cinco, seis, sei lá. Falando em movimento de mulheres, a gente sabe que o feminismo das mulheres europeias é diferente das mulheres norte-americanas em vários aspectos. LGBDT também tem várias tendências. Eu acho que quando se fala de movimento não dá para pensar em uma coisa unida, porque há várias tendências. Existem vertentes do movimento negro que tentam negar o branqueamento como solução. O que foi colocado para o Brasil muitas vezes. E você sabe que o branqueamento é uma lógica que está colocada desde o século 19.
Você não acha que vai chegar um momento em que o cabelo e a cor não vão importar mais?
Sim, isso é a utopia e a gente tem de ter utopia. Eu discuto raça e discuto racismo que é para a gente não fazer de conta que a ferida não existe. Tem a ferida? A gente tem que mostrar a ferida e tem que sará-la. A gente só poderá ultrapassar o conceito de raça quando a gente esgotar o tema. O Brasil é cínico o suficiente para pegar um ator branco e pintar de negro para fazer uma caricatura, no cinema ou em um programa supostamente humorístico. Nós precisamos discutir isso. Vai doer? Vai doer, mas nós precisamos avançar. O meu propósito, como artista, às vezes, é fazer trabalhos que impactam. Quando atearam fogo no CEU, em apartamentos de estudantes africanos, expusemos trabalho de 12 artistas na galeria falando o que eles pensam sobre o racismo. Então, eu acho que não tem como falar em sociedade democrática sem a gente ir fundo nesse tema. Cultura democrática é isso: perceber a diferença, o outro. Perceber que o outro é o outro, não precisa ser igual a você. Como cidadão, ele pode percorrer os mesmos espaços, pode almejar os mesmos sonhos. Participar das mesmas disputas que você participa.
Por que grande parte dos artistas negros norte-americanos, como os rappers, pouco se preocupa com a questão africana? Preferem vender a imagem de uma pessoa bem-sucedida, com carrões, mulheres loiras, champanhe e charutos, do que resgatar suas origens?
O hip-hop tem duas vertentes. No começo, tinha a linha mais hard, de focar e de questionar o status quo, os sistemas, as elites e se manteve nisso até a chegada da indústria cultural. O mercado diz: você faz hip-hop, mas a gente pode usar o mesmo ritmo com outro conteúdo. Isso aconteceu com o reggae também. Ele nasceu com um viés militante, com as letras de The Wailers, Peter Tosh, Bob Marley e tantos outros, mas depois foi cooptado num outro sentido. Tem gente que vai fazer reggae para dançar, sem um lirismo que nos leve a pensar. Isso também acontece com os rappers. É óbvio que tem aqueles que se mantenham mais autênticos, como tem outros com apelo erótico terrível. Esse empobrecimento aconteceu em vários momentos. A música afro-baiana passou por isso nos anos 1970 e 1980. Ela era uma música de afirmação e se transformou no que chamam de axé music.
E isso lhe agrada?
Não é por ser baseado na cultura negra que vai me agradar, não sou obrigado a gostar de tudo. O funk, principalmente o relacionado ao narcotráfico, não me agrada. Claro que ele ocupa o papel de agregar pessoas que são marginalizadas. Mas se você for pensar esteticamente, não é uma estética musical que vá me seduzir a ponto de eu adquirir um produto, um CD. Eu só quero que você entenda que a indústria cultural cumpre esse papel.
O Brasil é um país extremamente machista e racista, mas mesmo assim elegeu uma mulher para presidente. Você acha que o país um dia vai conseguir quebrar esse preconceito e eleger um representante negro?
E digo mais: uma mulher negra. Porque tem uma coisa muito complicada: na escala social, as mulheres negras são as que se encontram num prejuízo maior. O homem negro, do ponto de vista da expectativa de vida, está pior porque ele vive menos do que a mulher negra. Mas, do ponto de vista da renda, a mulher ainda está muito aquém. Não só um presidente negro, mas uma presidenta negra. Em vida, eu ainda espero ver isso.
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