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segunda-feira, 22 de março de 2010

Bem-vindo, rei!

O IS reproduz matéria de Tiago Faria, publicada hoje (22/03/10) no caderno Diversão e Arte, do jornal Correio Braziliense.

Bem-vindo, rei!

Aos 84 anos, B.B. King (foto) volta a tocar em Brasília com sua velha companheira Lucille, a guitarra que o acompanha há anos

Rio de Janeiro — Para suportar a labuta nos campos de algodão, Riley B. King se concentrava em um lema que, nos momentos mais difíceis, aplacava o cansaço. “Continue, siga em frente”, repetia. Na época, o menino de 10 anos trabalhava em plantações do Mississippi, estado no sul dos Estados Unidos onde nasceu. Muito tempo depois, aprenderia a usar a ladainha para outro fim: nos momentos de desânimo, B.B. King volta à infância. Relembra o velho mantra. E é o suficiente para que o homem de 84 anos, mito do blues, se sinta revigorado. “Vou ser um garoto até morrer”, planeja.

Não se trata de um slogan vazio. Nos palcos, o cantor e guitarrista ainda insiste em iludir o tempo. Vestido a rigor — ou, nas palavras dele, como quem vai ao banco pedir um empréstimo —, acalenta a guitarra Lucille, agora aninhada no colo do rei. As dores no joelho, provocadas por excesso de peso, obrigam o ídolo a se apresentar sentado. Mas nenhuma restrição médica (nem a diabetes nem a hipertensão) reduz o alto nível de vigor que se encontra na arte de King. “Amo o que faço. Às vezes, fico cansado, mas isso acontece em qualquer trabalho. Ainda quero ser melhor do que sou”, garante. B.B. significa blues boy (menino do blues), e não à toa.

O entusiasmo de um artista que ainda faz cerca de 100 shows por ano (já chegou aos 300) é amenizado pela necessidade de tatear o freio. Em 2006, King anunciou uma turnê mundial de despedida, que passou por São Paulo, Curitiba e Rio de Janeiro. Mas, cria das estradas, resolveu mudar de ideia. Hoje, se apresenta pela segunda vez em Brasília (a primeira foi em 2004), no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, depois de ter feito escalas no Rio de Janeiro e em São Paulo.

O músico transita pelo país em ônibus de luxo, equipado com geladeira, DVD, som, tevê e internet. “Ainda quero me apresentar outras vezes no Brasil, se permitirem. Músicos vivem com os bolsos vazios”, explica, bem-humorado. A viagem pela América Latina, patrocinada pela casa de shows paulistana Bourbon Street, termina em Buenos Aires, nos dias 24 e 25. Sobre o repertório, mantém segredo. “Antes de sair com uma dama, você conta sobre a roupa que você vai usar?” No Rio, tocou sucessos como Let the good times roll e The thrill is gone.

Há quatro décadas, King vive uma monarquia serena. A coletiva de imprensa, em cenário carioca, é uma cerimônia sem trombetas ou tapete vermelho. Sentado em uma cadeira de rodas, empurrada por dois assistentes, B.B. King entra em cena com figurino quase discreto: terno marrom, chapéu preto e camisa social estampada em tons de amarelo. A ausência de joias extravagantes ressalta o dourado dos óculos de grau. “Perdoem o meu Rolls Royce”, brinca o guitarrista. E, como num movimento encenado, ele levanta-se atleticamente da cadeira e se acomoda diante do microfone. “Tenho pernas ruins”, brinca. É um detalhe.

Caravana
A voz, é claro, não confunde ninguém. Mas o homem que se apresenta aos jornalistas parece ter deixado o peso do mito ao lado das malas, no quarto de hotel. O tom de modéstia chega a desorientar quem sabe estar diante de um pioneiro da música popular americana do século 20 — um guitarrista que, desde os anos 1960, inspira uma caravana de astros do rock, de Eric Clapton e Jimi Hendrix a Bono Vox, do U2. “Não sei se influenciei ou se continuo influenciando muita gente. Nenhum músico me diz isso. Só fico sabendo quando os jornalistas me contam”, afirma, a sério. “Meu objetivo nunca foi ser um grande guitarrista, mas uma boa pessoa”, resume.

O amor pelo blues aflora quando King confronta um incômodo antigo: o desdém como as rádios norte-americanas tratam o gênero. “É muito triste, mas meu país não toca as minhas músicas diariamente. As pessoas sabem quem é o B.B. King, mas não ouvem o B.B. King”, reclama. “Há ótimos músicos em atividade. Só que o mundo está muito diferente. Na minha época, havia o boogie woogie. O bom era dançar agarradinho. Hoje, os jovens dançam de uma outra forma, cada um num canto”, compara o ganhador de 15 prêmios Grammy.

Esse mundo novo, apesar das estranhezas, encanta o bluesman. Nas estradas, ele gosta de observar as pessoas que caminham à margem do asfalto. Quando visita uma cidade como o Rio de Janeiro, se satisfaz com os momentos em que, no quarto de hotel, vê a paisagem da janela. “Gosto de sentir a brisa. Sozinho”, ressalta. Pai de 15 filhos com 15 mulheres, King se casou duas vezes e hoje está solteiro. Visitou 90 países e lamenta ter medo de tocar em regiões afetadas por guerras. Em 60 anos dedicados ao blues, viveu alguns dos principais episódios da história americana do século passado. Mas quando fala sobre velhice, mostra desconforto. Respira fundo, arrasta sutilmente a cadeira. “Odeio a palavra ‘velho’”, admite. E passa a lição: “A música é como uma ideia: ela não envelhece nem morre”.

O REPÓRTER VIAJOU A CONVITE DA PRODUÇÃO DO SHOW

PONTO A PONTO


» VELHICE
“Nas turnês, às vezes fico cansado. Minha motivação vem do público. Às vezes, me canso, mas não é sempre que acontece. Acho que um pouco de cansaço é inevitável em qualquer trabalho, pelo menos naqueles que são feitos de forma honesta, dentro da lei. Gosto muito do que faço. Se uma pessoa sorri quando me vê tocar, fico agradecido para sempre.”

» DESPEDIDA
“Se me permitirem, quero me apresentar outras vezes no Brasil. Nós, músicos, estamos sempre de bolsos vazios. Não temos tanto dinheiro e dependemos de produtores que acreditam no nosso trabalho. Ainda estou muito feliz com o que faço e, se ainda me quiserem, eu voltarei. Não conheço muitos músicos brasileiros, mas tenho amigos no país. Sei que sou um dos guitarristas que estão em atividade há mais a tempo e que gostam de estar na estrada. Talvez eu seja mesmo tudo isso que falam.”

» BRASIL
“Vocês têm um país com lindas mulheres e ótimos músicos. E é tudo tão bonito… Lembro da primeira vez em que viajei ao Rio de Janeiro. Aquela imagem da cidade, que vi pela janelinha do avião, ficou na minha cabeça para sempre. Eu queria muito ter a chance de ver o Rio daquela forma novamente, mas não consigo, não enxergo tão bem. Aí está a diferença entre a época em que se tem 40 anos e quando se tem 80 anos.”

» RÁDIOS
“O blues não tem muito espaço nas rádios, infelizmente. No meu país, pelo menos, somos ignorados. Não são muitas as pessoas que ouvem B.B. King. Me convidaram para o Rock N’ Roll Hall of Fame, mas esse tipo de coisa só acontece às vezes. Não estou diariamente nas rádios. É uma situação que me deixa muito triste. É terrível viajar tantos quilômetros para contar esse tipo de notícia ruim. Mas quem sou eu para dizer o que as pessoas devem ouvir? Faço discos, e há quem goste deles.”

» VITALIDADE
“Tenho 84 anos, não bebo nem fumo. Há pessoas que preferem fazer tudo por prazer e acabam se matando. Adoro conhecer culturas diferentes. Aprendi muito nos cerca de 90 países que conheci. E me emociono com tudo isso. Me sinto feliz em poder simplesmente sentar e conversar com as pessoas, de apertar suas mãos depois de um show.”

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